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26 de Abril de 2024
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    In memoriam do Massacre do Eldorado do Carajás

    Publicado por Expresso da Notícia
    há 21 anos

    “Cheguem até a borda, disse ele. Eles responderam: temos medo.

    Cheguem até a borda, ele repetiu. Eles chegaram.

    Ele os empur- rou...e eles voaram.”

    Guillaume Apollinaire

    17 de abril. Não é uma data qualquer. É o sétimo ano do Massacre de Eldorado do Carajás. Na carnificina foram imolados dezenove trabalhadores rurais sem terra. Foram mutiladas ou feridas mais oitenta e uma pessoas. Sessenta e nove delas integrantes do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e doze policiais militares. Este ano o dia 17 de abril cai numa quinta-feira Santa. Não se pode deslembrar que duas paixões se passam.

    Eldorado do Carajás. Confronto crudelíssimo na destruição da vida. Episódio de violência contra seres humanos livres, do qual não há exemplo. Violência inaudita. Não podemos abandonar sua memória. Reconstituir e preservar a memória histórica dos acontecimentos ligados a setores subrepresentados da sociedade é dever de quem abraçou a causa dos Direitos Humanos. Essa é a única possibilidade existente para garantir que a versão dos vitimados subsista paralelamente à história que restou registrada no processo. A esse propósito deve ser lembrado que foram os próprios algozes - da Força Pública Militar do Estado do Pará - que fizeram a colheita das provas. Não sem antes desfazer a cena do crime. Não sem antes de distribuir armas não acauteladas. Não sem antes de retirar a identificação das fardas... Não sem antes de tudo cuidar para impedir a identificação individual dos que iriam praticar o hediondo crime.

    A rememoração dos acontecimentos fragiliza os mecanismos de imposição de poder pelo decurso do tempo. A manutenção viva da memória deixa em aberto o campo de disputas onde os diversos segmentos sociais travam a luta pela transformação da cultura. Por cumprir a memória o papel de reacender os fatos, é que no desenrolar do julgamento – o maior da história do Brasil, com 120 horas de duração, 146 réus e sem a cobertura esperada da mídia – a defesa sempre impugnava a visualização, na tela, das imagens do que restou das pessoas após a trucidação.

    Quem viu jamais esquecerá. O difícil reconhecimento do ser humano. Crânios esfacelados. Restos de cérebros espalhados pelo chão. Membros amputados. Membros distanciados do cadáver original. Corações perpassados... Crimes de homicídio caracterizados como violações de direitos humanos. Excesso doloso absolutamente configurado. Hoje, a indignação só não basta. A sociedade exige que os culpados respondam pela monstruosidade que praticaram. O julgamento não foi o momento oportuno para isso. Infelizmente.

    As falhas do sistema de administração de Justiça foram gritantes. Mesmo estando em vigor a Lei de Proteção a Testemunhas e instalado o programa dela decorrente, não houve, apropriadamente, a inserção das testemunhas e suas famílias no referido programa. As testemunhas de acusação imersas em um contexto social de propalado descrédito quanto ao regular funcionamento do sistema judicial – concretizado por sucessivas mudanças dos juízes condutores do processo, a última delas às vésperas da primeira sessão de julgamento – a partir da segunda sessão de julgamento deixaram de se apresentar.

    Não bastasse essa grave falha, o critério utilizado para a definição da quantidade dos réus a serem julgados em cada sessão foi o de ser o mesmo, o advogado por eles constituído. Essa circunstância deu margem a que fossem julgados de uma só vez 127 praças. Preocupada com as absolvições em massa ocorridas nas 3a e 4a sessões e com a inexequibilidade do julgamento de tantos réus em uma única sessão, a Assistência da Acusação fez requerimento ao Juiz pedindo a divisão do julgamento. Não sendo atendida, retirou-se do Plenário. Esse critério não vinculava o Tribunal do Júri porque não é um critério definido em lei. Tal critério aplicado a partir da 4ª sessão, passou a significar a inobservância de princípios constitucionais e legais inafastáveis à regularidade do julgamento. Entre eles citam-se: a busca da verdade real; a falta do regular exercício da acusação, por não ter havido tempo hábil para promover perante os jurados a individualização da conduta de cada réu; impedimento de que cada jurado tivesse a compreensão exata da conduta atribuída a cada réu, assim como a defesa que cada um produziu, de modo a que tivessem condições de julgar no rito legal definido para o Tribunal do Júri.

    A chacina realmente não teve fair trial . O julgamento serviu para demonstrar que não só o crime organizado usurpa os Poderes da República, instala uma nova ordem, prende, julga e executa. Como foi feito com o jornalista Tim Lopes. Também o próprio Estado faz isso por meio de execuções sumárias acionando seu braço armado. Esse episódio é a demonstração inequívoca do quanto o Estado pode ser desviado de seus objetivos. De como pode executar dezenove pessoas numa operação de guerra, com todos os requintes da mais absoluta crueldade. Toda essa ação indigna e desumana foi perpetrada pelo Poder Público, por agentes pagos pelo Erário, sob o comando de pessoas que receberam anos de formação profissional. E que agora desafiam a todos quantos têm o compromisso com a vida humana, com a tese de que nada ocorreu e que tudo foi virtual. Apenas dois mandantes condenados, nenhum dos executores. A aceitação em juízo da hipótese de que todos os executores atiraram para cima, é um escárnio para com o bom senso.

    A instituição judiciária tem se eximido de cumprir seu papel. Das oito testemunhas da acusação, apenas duas compareceram à primeira sessão do julgamento. No caso concreto tem-se um processo desaforado, pelo qual o Tribunal não se sentiu com a responsabilidade de sequer conduzir a testemunha que é de outro município. Frise-se: do município de onde originalmente corria o processo. A condução de testemunhas certamente não é ônus da parte. A produção da prova testemunhal era única que tinha restado à acusação. Não nos esqueçamos que o inquérito está absolutamente comprometido. E tanto isso é verdade que as duas testemunhas que compareceram à primeira sessão de julgamento prestaram depoimentos tão objetivos e claros que houve a condenação do comandante da operação em 228 anos de reclusão por homicídio qualificado. Ele se encontra respondendo ao processo em liberdade. Tem 66 anos de idade. Será que existe a mínima possibilidade de vir a recolher-se à prisão? Quase um ano se passou da última sessão de julgamento, que ocorreu em 20 de junho próximo passado. Os recursos ainda não foram enviados ao Tribunal competente.

    No espaço que se permite a uma publicação é impossível enumerar todas as falhas que nos permitem concluir que houve um simulacro de julgamento no caso de Eldorado do Carajás. As já expostas dão idéia da dificuldade de se ter confiança que a justiça brasileira se fará reta, imparcial, incorruptível, prudente, segura, honrada e pronta.

    Entretanto, um fato novo aponta para uma solução do caso, mais rápida do que aquela vislumbrada por uma possível punição dos culpados, quando do julgamento dos recursos apresentados pela defesa e pela acusação. Em 18 de março desse ano a Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA, que tem o caso em mãos desde 6 de setembro de 1996, resolveu declarar, sem prejulgar o mérito da denúncia, a admissibilidade da petição com relação aos fatos denunciados, que dizem respeito a supostas violações dos artigos 4, 5, 8, 25 e 2, da Convenção Americana sobre Direitos Humanos e 1.1 do Tratado. Esses artigos dizem respeito ao direito à vida, à integridade pessoal, às garantias judiciais, aos recursos judiciais, e ao dever de adotar as disposições da Convenção no direito interno. Não é demais lembrar que em 25 de setembro de 1992 o Brasil ratificou a Convenção Americana de Direitos Humanos. Assim, quando os fatos aconteceram, a Convenção já estava em vigor para o Estado brasileiro e que, portanto, tinha a obrigação de respeitar e garantir os direitos nela consagrados.

    A Justiça se fará. O país ainda terá uma política agrária conseqüente. E os crimes contra os direitos humanos haverão de ser federalizados. O Ministério Público Federal não vai deixar prevalecer a cultura do esquecimento.

    Aos que foram martirizados em Eldorado do Carajás desejo que a terra lhes seja leve. Esse nefando acontecimento não ficará esquecido nos escaninhos da memória nacional. Em nome do respeito e da dignidade da vida humana, o país lhes deve a lembrança para sempre. Resquiescat in pace .

    *Maria Eliane Menezes de Farias é Subprocuradora-Geral da República e Procuradora Federal dos Direitos do Cidadão

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